30 Março 2023
No paraíso, os bispos não terão permissão para falar sobre questões de sexo e gênero. O mesmo vale para os teólogos.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 29-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 20 de março, a Comissão de Doutrina da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos emitiu uma declaração, ou nota doutrinal, com orientações para as instituições católicas de saúde em relação aos tratamentos médicos para pessoas transgênero.
Em poucas palavras, a declaração expõe as razões pelas quais as instituições de saúde católicas não podem realizar operações de mudança de sexo, ou métodos terapêuticos semelhantes, pelos quais uma pessoa faz a transição de um sexo biológico para outro.
O documento levanta várias dificuldades. Um bispo me disse que achava que faltava sensibilidade pastoral. É um tanto injusto culpar a comissão de doutrina por emitir uma declaração doutrinal.
É também um documento altamente técnico. Por exemplo, o parágrafo 10 trata da “moralidade das intervenções empreendidas para aprimorar o corpo não em termos de seu funcionamento, mas sim em termos de sua aparência, o que pode envolver tanto a restauração quanto a melhoria da aparência”. Tenho certeza de que esse parágrafo faz sentido para os especialistas em saúde e os bioeticistas, mas o resto de nós, equipados apenas com o senso comum, estamos preparados para avaliar que fazer um facelift não é como fazer uma mudança de sexo.
Dito isso, nos dias de hoje, e especialmente em uma questão polêmica como essa, cada declaração de um bispo individual ou de um grupo de bispos deve levar em consideração suas consequências pastorais. Mesmo sendo dirigidos aos administradores de saúde, antigamente públicos, tais documentos repercutem por toda a Igreja.
O documento afirma que os profissionais de saúde católicos “devem empregar todos os recursos apropriados para mitigar o sofrimento das pessoas que lidam com a incongruência de gênero”. Não custava nada aos autores do texto expressarem algumas poucas palavras de compaixão para aquelas pessoas que experimentam algum tipo de incongruência de gênero ou observarem os imensos desafios que essas pessoas enfrentam.
Também ouvi reclamações de que a comissão não consultou suficientemente um grupo mais amplo de bispos, especialmente aqueles bispos que têm instituições católicas de saúde em suas dioceses. Uma fonte familiarizada com o processo de redação do texto me disse que o documento foi construído ao longo de vários anos e que a comissão consultou amplamente bispos e teólogos. Em uma organização dividida por pontos de vista graves e persistentemente conflitantes, quase nunca existe muita consulta.
Voltando ao próprio texto, ele exibe um problema que há muito tempo persegue a teologia pós-conciliar, ou seja, a tentativa de fundir a teologia tradicional da lei natural com a “teologia da Communio”, ou seja, a teologia que remete ao periódico fundado pelo então Pe. Joseph Ratzinger, pelo Pe. Hans Urs von Balthasar e pelo jesuíta Pe. Henri de Lubac.
Nas áreas do ensino social e da eclesiologia, essa fusão criou um todo praticamente ininterrupto, como visto em textos magisteriais como a encíclica Caritas in veritate, do Papa Bento XVI, e em obras teológicas como o magnífico “Heart of the World, Center of the Church: Communio Ecclesiology, Liberalism, and Liberation”, do falecido David Schindler, que aplicou a “teologia da Communio” do grande teólogo suíço Hans Urs von Balthasar a uma série de questões na Igreja dos Estados Unidos.
A relação entre o ponto de vista da “teologia da Communio” e a moral católica, no entanto, tem sido difícil de analisar. Como apontei quando resenhei o livro de Schindler na The New Republic em 1999,
“é verdade que a visão moral balthasariana é difícil de esboçar. Os balthasarianos tendem a não se concentrar em questões morais precisamente porque temem reduzir a religião à moral. O que está claro é que um esquema moral balthasariano seria, ao mesmo tempo, mais radical e mais reticente do que qualquer dispensação da lei natural. Schindler lembra aos cristãos que eles são chamados à conversão, e não apenas à bondade, e que essa conversão é uma luta vitalícia. A lei natural inevitavelmente resulta em uma moral prática e centrada no ato, que convida a um tipo de minimalismo espiritual. A visão balthasariana é psicologicamente mais astuta. Ela reconhece que mesmo as melhores intenções não estão isentas do egoísmo, que o pecado faz parte da alma”.
Acrescente-se a isso os muitos e controversos usos que os teólogos da Communio fazem do conceito de gênero, e você tem muito espaço para críticas.
O maior problema prático do documento é que a hiperteleologia da lei natural, combinada com uma compreensão rigorosa do chamado à conversão nos Evangelhos, produz uma compreensão da moral sexual que não permite exceções e carece de todas as nuances. A constatação de que, para uma pequena, mas definida, porcentagem da população, a identidade sexual é vivenciada tanto como constitutiva, ou seja, não como algo escolhido, quanto fora das normas morais que surgiram na história da Igreja proibindo os desvios sexuais desafia essa compreensão tradicional da lei natural e da moral sexual.
O modo de superar esse problema é algo que vai além do meu alcance, mas acho que qualquer prelado honesto admitiria que o ensino da Igreja sobre a sexualidade, em sua configuração atual, é inadequado.
Não há dúvida sobre o fato de que as opiniões da hierarquia e as opiniões dos teólogos são mais divergentes do que as questões de sexualidade e gênero. Portanto, não é de se surpreender que algumas figuras progressistas da comunidade teológica tenham se apressado em criticar o documento.
Meu colega Pe. Dan Horan, diretor do Centro de Espiritualidade e professor de filosofia, estudos religiosos e teologia no St. Mary’s College, em Notre Dame, Indiana, escreveu que o documento era “nada menos do que um desastre: teológica, científica e pastoralmente”.
A abordagem de Horan ao tema é emblemática da abordagem que muitos teólogos progressistas adotam para questões nevrálgicas de raça, gênero e sexo. Por exemplo, os leitores do NCR estão familiarizados com os escritos de Michael Lawler e Todd Salzman, da Creighton University, que seguem uma abordagem semelhante. Começam citando obras que desconstroem a tradição. Criam uma narrativa enraizada na identidade exclusiva de um grupo ou grupos, com forte ênfase em suas reivindicações autodeclaradas e visando a uma ética da libertação.
Seja lá o que você pense sobre essa abordagem, e acho que ela tem limites significativos, neste caso Horan falha em reconhecer um grande problema em sua crítica: ele quer que os bispos articulem aquilo que a Igreja não ensina. Ele cita o Papa Francisco sobre o fato de querer uma cultura do encontro, mas ignora as advertências do Santo Padre sobre a ideologia de gênero.
O Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido não contou com os bispos dos Estados Unidos ao tomar sua decisão de fechar o Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero de Tavistock. Ele se baseou em um relatório que apontava que os riscos de fornecer tais serviços não foram adequadamente estudados. “Qualquer benefício potencial dos hormônios de afirmação de gênero deve ser sopesado em relação ao perfil de segurança de longo prazo amplamente desconhecido desses tratamentos em crianças e adolescentes com disforia de gênero”, disse o relatório do NHS.
Hannah Barnes, que liderou a investigação da BBC sobre o centro de Tavistock, explicou em uma entrevista ao WBUR que uma das principais dificuldades era o “diagnóstico ofuscado”, no qual “um jovem que pode ter múltiplas dificuldades coexistentes, mas que também tinha dificuldades relacionadas ao gênero, uma vez que a palavra gênero era mencionada, todo o restante ficava estacionado, ou seja, não era tratado”.
Os estudos apenas começaram a analisar as relações entre a disforia de gênero e o autismo, por exemplo. Então, se vamos olhar para a ciência, precisamos olhar para ela como um todo, não apenas para as partes que se conformam com a ideologia de gênero já alcançada.
Há muito mais a ser dito sobre as questões trans e a Igreja Católica. Voltando ao documento dos bispos, gostaria de fazer duas recomendações, uma pequena e particular, e outra grande e ampla.
Primeiro, gostaria que as lideranças católicos, na hierarquia e na academia, adotassem esta frase: “Isto não está na nossa tradição”, em vez de se apressarem em denunciar algo ou alguma ideia como “pecaminosa” ou “prejudicial”. A tradição se desenvolve e precisa de uma análise autocrítica para fazer isso, e o uso de uma linguagem pesada só faz as pessoas se entrincheirarem. O que constitui ou não um “prejuízo” é o cerne do debate, de modo que jogá-lo para o outro lado apenas ofusca, e não esclarece, as questões. A recente declaração e o vídeo dos bispos escandinavos fizeram um trabalho muito melhor ao exporem os ensinamentos da Igreja sem criticarem ninguém.
O problema maior ou anterior é que nós, católicos estadunidenses, precisamos encontrar formas de deixar de reduzir a religião à ética, seja essa ética conservadora ou liberacionista. Nosso ensino ético, especialmente no âmbito da sexualidade humana, não pode se sustentar por conta própria, mas nunca foi pensado para se sustentar por conta própria.
Precisamos redesenhar continuamente os vínculos com a antropologia cristã a partir da qual crescem as nossas reivindicações éticas e redesenhar o modo como a nossa antropologia se enraíza na nossa cristologia. Se colocarmos os ensinamentos sexuais na vanguarda dos nossos esforços de evangelização, nos tornaremos cúmplices no esforço de transformar a Igreja em um clube de classe média-alta para pessoas com uma ética sexual conservadora ou liberal.
Como um bispo me disse recentemente, “precisamos apresentar as pessoas a Jesus antes de começarmos a falar sobre sexo com elas”. Amém.
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Documento transgênero dos bispos dos EUA e seus críticos precisam de mais autocrítica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU